Kashmira — terra de desejos. “Parte integral da Índia,” por um lado; a “veia jugular do Paquistão,” em outro, esta é uma terra de desejos geopolíticos. Uma questão que concerne o sentido pleno do termo aazadi. A Kashmira que é metonímia de um vale geográfico, “o paraíso na Terra.” Distingue-se aqui o vale da região indiana — bem como da entidade que precedeu a sua independência do domínio britânico em 1947. Não é lícito que aqui tratemos da lógica feudal aos pequenos estados administrados pelos mahajaras; estamos lidando com uma realidade adversa. A partir de 1948, portanto, a organização administrativa denominada Linha de Controle, responsável pela determinação das fronteiras de facto, encarregou-se de separar os territórios de Jammu e Kashmira controlados pela Índia daqueles constituídos pela Kashmira “Azad,” isto é, a contraparte delegada ao Paquistão. A LDC, todavia, assume um papel geopolítico incerto, uma vez que as fronteiras em questão continuam, da mesma forma, caracteristicamente incertas. Geo-corpo, o rico simbolismo no qual consistem as fronteiras que, se não traçadas pelos mapas, elevam-se naturalmente quer consideremos os povos em questão.
A questão das fronteiras, contudo, e em especial aquelas em torno de Jammur e da Kashmira, conta diferentes histórias, apresenta diversas perspectivas que concebem ao sul asiático as suas características únicas. Em termos paquistaneses, a nível de exemplo, as terras orientais que constituem Jammu e a Kashmira, algo em torno de 78ºE, concebem a forma retangular que configuram o Estado; no mais, enquanto os limites do Paquistão ao norte parecem por vezes inexistentes. as suas linhas, não demarcadas, isto é devido, na verdade, às demandas chinesas à posse dessa região. Em suma, a LDC que, nas palavras de Ananya Kabir, assume um papel crônico de “presença na ausência,” porquanto aqui lidamos com limites territoriais sempre voláteis e autorregulados, limites que hesitam nos seus status de facto e de jure, limites que, por fim, continuam a resultar na inabilidade tanto do Paquistão como da Índia em reclamar as suas terras de desejo. O vale, uma face perdida. A modernidade que chega no contexto dessa região, do século XIX em diante, pode-se considerar centrada em novos meios de subjetividade que emergem de uma rápida evolução das tecnologias de reprodução mecânica. O vale-objeto, o vale que é objeto perdido. O frame fantasmagórico de uma lente que está sempre a capturar uma perda, na linguagem de Sontag, isto é, significante de uma falta fundamental.
Terra de nuances entre indianos e paquistaneses, terra dos fetiches que atravessa a modernidade. O vale, a sua demografia, geografia e cultura constituem por si só objetos de contra-fetiche, objetos de maleficium. O vale é um fantasma — não, todavia, um fantasma adolescente como, por vezes, costuma-se chamar —, um fantasma velho. Enquanto a Índia moderna carrega o seu fardo de Estado colonial, o vale da Kashmira assume o seu papel do Outro de pós-colônia. O trauma psicanalítico que constitui a falta do vale não está localizado no espectro colonial que persegue a nação pós-colonial, segundo Kabir, nem mesmo está de acordo com o seu nascimento violento em 1947, contudo pode ser detectado no cenário mesmo da modernidade, bem como nas suas novas tecnologias de prazer.
A construção do discurso religioso em torno do vale nos traz à memória um cenário em comum com o conflito israelita em terras palestinas. Estamos agora em 1948, ano da criação do Estado de Israel, ano também em que quatrocentos mil palestinos refugiados cruzaram as fronteiras do Líbano. Por vinte anos viveram em campos de refúgio nas redondezas dos subúrbios libaneses, próximos a Beirut. Em 1968, portanto, a capital tornou-se o ponto central da Organização de Liberação Palestina (OLP), o foco central de mais de dez diferentes facções políticas determinadas a derrubar o Estado de Israel. O chairman Yasser Arafat encontrou uma base ideal em terras libanesas para as operações da OLP, operações essas que, a partir das fronteiras, tinham o objetivo de penetrar as terras israelenses.
O discurso fotográfico no suéter wooly pooly capturado de um combatente libanês por soldados israelenses, uma verdadeira overdose imagética dos seus uniformes e armamentos militares, a modernidade fazendo-se presente também meio aquelas terras. O wooly pooly paquistanês, quanto simbolismo presente na mão de um soldado de Israel que o captura, o objeto transcendente, a falta, e, então, o objeto novamente apreendido.
— Nota escrita em 3 de junho de 2025.

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