A “revolução poética” de Julia Kristeva é um projeto linguístico que está muito além da simples investigação das relações formais pelas quais o fenômeno estético vem a adquirir a possibilidade de atingir os meios no sentido da prática de uma língua travestida. Jakobson realizara tal empreendimento antes. O aparelho metodológico de Kristeva, contudo, é heterogêneo e rico em muitos aspectos. Enquanto pensa o sujeito, criador de discurso, e, logo, de sentido, o faz tecendo a sua tese e tomando emprestado conceitos não somente da linguística e da nova semiologia, no entanto, e sobretudo, da antropologia e da psicanálise, ciências materiais do indivíduo social. Existe, aqui, um enérgico ponto de contato com Deleuze, mais precisamente em relação à produção da sua “lógica do sentido,” onde discute concisamente, embora de forma bastante produtiva, o devir louco, o pensamento serial e a regressão infinita, o papel das singularidades — a sua neutralidade, impassibilidade — quanto à fuga do núcleo noemático que pervade e satura a constituição da hylé. Deleuze elabora, antes mesmo da sua parceira com Guattari, uma genuína teoria da linguagem que, após esclarecida em seus pontos mais essenciais, adentra simultaneamente o ente psicanalítico, os seus relevos e profundidades corporais, as suas zonas erógenas parciais, as suas delimitações sexuais enquanto produtos de uma constituição não apenas edipiana, mas principal e essencialmente linguística; tal como em Guattari, por outro lado, a prática psicanalítica de Kristeva constrói-se frente a um avanço sóbrio e determinado para a desestabilização deste mesmo mito edipiano como propulsor dominante no interior da sociedade capitalista, e o refinamento com que aplica o materialismo dialético às suas pesquisas por vezes nos faz sentir a afinidade com a qual ambas as obras dialogam, uma vez que a clareza com que conduz o seu projeto epistemológico serve de auxílio e lança um foco de luz perante o outro, por vezes obscuro — e ainda mal compreendido — pensamento diagramático de Guattari.
O processo de significação, neste cenário, é dirigido até os seus limites ideológicos, onde explode e acarreta no levantamento de um outro complexo de questões centrais as quais procurarei tratar em um outro momento — questões, por exemplo, que nunca chegaram a ser elaboradas nos tempos de Wilhelm Reich. O biológico e o social, as delimitações erógenas controladas, dirigidas e organizadas por uma economia do corpo tornam-se, para Kristeva, uma questão material de prática e resistência, e cuja principal manifestação é testemunhada na linguagem mesma, através de processos que ela denomina signifiance.
Quando alude à teoria freudiana do sujeito, o faz partindo de uma perspectiva puramente linguística, enquanto identifica nesta uma entre duas tendências no âmago dos estudos semiológicos dos tempos mais recentes, sendo a outra, em resumo, a fenomenologia husserliana. Em relação à primeira, a que nos interessa por ora, identifica a existência de uma relação simbólica arbitrária entre significante e significado, sempre “motivada” pelo inconsciente — a partir do entendimento das pulsões — que, incessantemente, empreende a conexão de “significantes vazios” às mais variadas funções psicossomáticas, em particular através de uma sequência de metáforas e metonímias, fazendo da arbitrariedade desta relação algo articulado como resultado. Embora, portanto, o objeto tradicional da epistemologia linguística dispense o sujeito — e, quando finalmente aceita-o, é apenas no sentido do ego transcendental fenomenológico —, a aproximação de Kristeva, logo no início do seu trabalho, traz a questão da externalidade da matéria da linguagem, que não possui apenas um objeto formal, como também um sujeito a quem este objeto é relacionado. Este sujeito é fragmentado, da mesma forma como realiza-se a sintaxe dos processos lógico-semânticos, e determinado a partir da inter-relação entre as suas zonas erógenas. É exatamente aqui onde realiza-se um ponto de contato essencial com a obra de Deleuze, que, de acordo com estes termos, pode ser analisada e compreendida como complementar. Kristeva, contudo, denuncia o fracasso geral de tal aproximação, uma vez que, apesar desta abordagem tornar possível a reabilitação da noção de corpo fragmentado a nível pré-edipiano — embora já investido de semiose —, esta falha em articular tais estágios anteriores àqueles do sujeito pós-edipiano, dotado, em sua totalidade, de conexões extra-simbólicas. Desta forma, apresenta a segunda corrente epistemológica cujo posicionamento de um sujeito de enunciação torna-se igualmente dado como um fenômeno central para a pesquisa linguística.
Este sujeito, como exposto acima, é aquele husserliano, cujos campos semânticos e relações lógicas — como também intersubjetivas — provam ser de natureza tanto intra quanto translinguística. O sujeito, em si, significa. O posicionamento a partir de onde comunica introduz questões estilísticas ao campo da semântica. O trabalho de Hayden White, a nível de exemplo, torna-se notório a este respeito. Enquanto busca traduzir o revestimento psicológico do pensamento historicista do século XIX, em termos de estilo, analisando obras como as de Hegel, Nietzsche e Marx, através do seu conceito de meta-história, aprofunda o estudo dos tropos, isto é, a teoria dos desvios de linguagem, chegando, desta forma, à conclusão de considerá-los inevitáveis quanto à prática do discurso, não importa o nível de cientificidade com o qual este esteja comprometido.
Somente após uma breve dissertação acerca destas duas correntes de produção intelectual na semiologia moderna é que Kristeva traz à tona o conceito de χώρα do pensamento platonista e traça um quadro etimológico que busca identificar as pulsões freudianas às suas raízes arcaicas, ainda que a sua significação originária nos remeta a um amplo cenário que mais serve para ofuscar do que para facilitar o entendimento deste. Em um nível pré-linguístico, consequentemente pré-edipiano, certas quantidades de energia atravessam o corpo do indivíduo, este, por sua vez, ainda não constituído como sujeito, e, a partir deste processo, tais energias tornam-se estruturadas de acordo com as restrições impostas sobre o corpo — enquanto envolvido de antemão em um processo semiótico — por instituições como a família, a princípio, e, depois, todas as demais instituições sociais. Os χώρα, portanto, uma concepção platônica sobre o problema ontológico heraclítico, esta manifestação de fluxos semióticos que ainda não tocam o plano do simbólico — dualidade em que insiste Kristeva —, esta totalidade não expressiva no sentido de uma identidade propriamente formulada e que, ainda assim, deixa os seus rastros sintáticos enquanto realiza-se. Esta mobilidade consiste em uma articulação essencialmente provisional, as suas fases são efêmeras, tendem a tocar o misticismo, e neste campo permanecem até o momento definitivo de um impulso a tratá-los como fenômenos submetidos à representação, ponto de transição ao tratamento do sujeito fenomenológico, o da intuição espacial, embrião de uma geometria.
Xώρα, em suma, é ritmo, está para o plano musical como a representação está para o cênico; χώρα precede a evidência provada, escapa à espacialidade e à temporalidade; fundamenta-as. Todo o discurso, enquanto χώρα, pulsa no sentido de afirmá-lo, enquanto, em sentido contrário, nega-o. Uma vez regulado, determinado, traduzido, não pode, não obstante, tornar-se posicionado. Em resumo, está sujeito a uma espécie de topologia, mas nunca ao tratamento axiomático.
Xώρα não é ainda posição a representar algo a alguém, como também não é posição a representar alguém a outra posição. É gerado, contudo, em vista de ser eventualmente dessublimado à posição significante, significada. Espaço do ritmo, da harmonia, da música, χώρα é o estado gasoso da matéria em sua plenitude, transcendeu o sólido, transcendeu também o líquido. É qualidade pura, versa sobre a infinita possibilidade de formações moleculares; a quantidade, a massa atômica homogênea, esta não lhe convém, não lhe diz respeito.
Xώρα não é uma modalidade de significação, portanto situa-se onde a ausência do signo não é ainda sentida como falta, não lhe pertencem as distinções entre o real e o simbólico, o alegórico ou o catártico.
É necessário insistir que os χώρα, como manifestação do que é essencialmente rítmico, harmônico, musical, e, logo, vocal, gestual, estão somente comprometidos a uma espécie de ordenação objetiva. O plano das instituições sociais, enquanto simbólicos, assumem o papel de impor restrições aos χώρα, porém nunca a ponto de submetê-los a uma lei; limitam-se, portanto, a traduzi-los a partir de ordenações. Pulsões, no sentido freudiano ou naquele mais abrangente ao qual nos remete Kristeva, envolvem elementos e funções semióticas pré-edipianas e descargas de energia que conectam e orientam o corpo, os seus contornos, as suas bordas e fronteiras, os seus relevos e profundidades em relação ao materno. É curioso pensar, em vista disto, o estudo de sociedades ditas “primitivas,” o recorrente quadro estrutural que nos é apresentado, a nível de exemplo, por Lévi-Strauss, bem como os adeptos de sua escola antropológica, o de sociedades matrilineares que, com o decorrer do processo de suas histórias — e o seu aspecto sincrônico aqui deve ser reiterado —, fatalmente ainda não reconhecidas como tal, apenas gradativamente vieram a tornar-se patrilineares. O estudo deste fenômeno é extenso, todavia, e por isso deve ser reservado a um outro momento.
A economia das pulsões orais e anais é materna, está estruturada na lógica do corpo, domina a organização sensório-motora. O corpo da mãe, o fluxo menstrual que o delírio esquizofrênico tenta sempre em vão reproduzir ao profanar o seu corpo com manchas de batom vermelho, serve como elemento mediador entre as relações sociais constituídas sob a lei do simbólico — em sentido geral, sob a lógica falocêntrica — e o princípio ordenador, a-significante, ausente dos χώρα semióticos, que, segundo Kristeva, estão sempre a caminho “da destruição, da agressividade, da morte.” Estamos, aqui, cruzando a margem da realidade do dispêndio, embora Bataille jamais tenha reconhecido o aspecto feminino que permeia o universo dos seus investimentos aniquiladores. A razão de ser dos χώρα, portanto, é precisamente a não-identidade, eis o motivo do seu impulso destrutivo, que, nestes termos, está repleto de uma acepção positiva. Este elemento de aniquilação, não obstante, não deve ser confundido com aquele da stasis, das súbitas descontinuidades cuja imposição é meramente externa — antes de partir de uma íntima profundidade interior — e advém das limitações impostas pelo plano do simbólico que, de outra forma, permaneceriam em vias de conexões com os fluxos vetoriais.
— Texto escrito em 22 de março de 2025

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